Em conversa informal, numa ocasião festiva, dialogava Lúcio com algumas senhoras a que fora apresentado, dentre elas certa filósofa, muito conhecida na cidade por seu trabalho como escritora, que anunciou para breve uma de suas palestras, cujo tema seria a morte.
— O assunto me interessa! – asseverou ele, causando ligeiro espanto no grupo de ouvintes. E justificou:
— É que, como espírita que sou, a morte se me apresenta sob perspectiva bastante natural.
Na verdade, sua intenção não ia além de fomentar o tema no bate-papo, tanto que prosseguiu ouvindo os mais diversos comentários. Em dado momento, sentiu-se confortável para afiançar a perfeição da Justiça Divina, em qualquer circunstância de óbito que não fosse caso de suicídio. Tal assertiva, no entanto, provocou indignação em uma das ouvintes, que questionou:
— Mas e quanto ao recente conflito na Faixa de Gaza? Onde a justiça de Deus para com tantas pessoas inocentes morrendo?
A dúvida era plenamente válida, no entanto Lúcio optou por não responder, e preferiu mudar de assunto. Concluiu que nem o ambiente, nem o tempo disponível, nem o grau de liberdade para com aquelas pessoas permitiriam que ele pudesse se expressar e compartilhar seu entendimento, sob a ótica espírita, tal como gostaria. Minutos depois deixou a festa, porém o questionamento o acompanhou durante os próximos dias. Sabia que se tratava de argumento devidamente esclarecido pelo Espírito André Luiz, no capítulo intitulado “Resgates coletivos”, na obra Ação e reação. Contudo, estava seguro de que agira corretamente – ali não seria o lugar, tampouco aquele o momento adequado, para tais elucubrações.
Passados alguns dias, lá estava ele em sua tarefa semanal rotineira, atuando como dialogador em reunião de educação mediúnica de sua casa espírita – naquele grupo, era um dos que conversavam com os espíritos manifestantes. Após as leituras iniciais na fase de estudos, preparava-se para as possíveis comunicações, quando percebeu, pela movimentação de uma das médiuns, que uma entidade já se fazia presente. Aproximou-se e perguntou:
— Podemos ajudar?
— Oh! Como estou triste! Não me canso de chorar…
— O que houve?
— Eu vivia feliz no seio de minha família, com meus pais, irmãos, tios e avós. Mas fomos todos muito humilhados! Invadiram a nossa casa, vociferaram impropérios! Quando meu pai tentou nos defender, agrediram-nos. Posteriormente, indiferentes à nossa presença, levaram todos os nossos pertences de valor – dinheiro, joias, objetos decorativos, pinturas –, nada restou! Entretanto, isso não me afetou tanto quanto o que veio a seguir!
— E o que foi?
— A separação! Expulsaram-nos de nosso próprio lar e se apoderaram da casa. Apartaram-nos e nos obrigaram a entrar em extensas filas, com pessoas estranhas, em sua maioria.
— Para onde, as filas?
— Imundos vagões, nos muitos trens da miséria e do terror, onde se viam cenas assombrosas e cruéis, como aquelas crianças em pranto, arrancadas à força dos braços de suas mães. Nenhum de nós, prisioneiros, conhecíamos o destino, não obstante o sinistro presságio de maiores sofrimentos.
Lúcio, que a tudo ouvia com muita atenção, entendeu que o desabafo fora suficiente para ele agir, a fim de não intensificar ainda mais a dor do triste testemunho. E, para demonstrar respeito, perguntou:
— Qual o seu nome?
— Chamo-me Hannah.
— O que você nos relata aconteceu na Alemanha, na Segunda Grande Guerra?
— Sim.
— Cara irmã, o nosso único objetivo é ajudá-la, procure ficar tranquila. Por favor, repare o ambiente em que você se encontra agora.
— É diferente… Parece um hospital, há muitos como eu sendo ajudados pelo que parecem ser enfermeiros!
— Precisamos lhe explicar algumas coisas, pedimos que você confie em nossas intenções. Tente não se espantar com o que vai ouvir, pois tudo lhe será esclarecido.
Com muito tato, Lúcio expôs delicadamente algumas informações que trariam a mulher à consciência da realidade – Hannah estava desencarnada e habitava a dimensão espiritual desde os tempos da guerra; apenas seu corpo material perecera, pois como espírito era imortal, semelhante a todos nós; mencionou as vidas passadas e a reencarnação. Obviamente, ela ficou confusa, não apenas pelo estranho despertar em um mundo diferente, como também por ideias tão contrárias ao entendimento do judaísmo, sua religião. Com seus muitos anos de experiência no esclarecimento de espíritos em sofrimento, Lúcio propôs, com determinação:
— Gostaria de conhecer a razão pela qual você teve de passar por situações tão terríveis?
Apesar de abalada com tantas novidades, Hannah aquiesceu. Lúcio então orou e pediu apoio a Jesus, a fim de que, com o auxílio dos Benfeitores Espirituais, pudessem ser apresentadas à suposta vítima as telas de seu passado, no que fosse suficiente para o deslinde da legitimidade dos acontecimentos, de conformidade com as leis divinas. Alguns segundos depois, ela começou a balbuciar:
— Estou vendo um tempo muito antigo! Não é a nossa época, é bem antes! Vejo escravos… inúmeros escravos! Mulheres, crianças, todos em intenso sofrimento! Vejo roupas vermelhas, eles vestem vermelho e escravizam as pessoas. Espadas, sangue, não podem escapar da violência! São homens impiedosos!
— Minha irmã – disse Lúcio, observe atentamente, você consegue perceber a si mesma neste cenário que nos descreve?
— Sim, consigo! Eu era um dos homens brutalizados, afligindo as pobres criaturas com a espada, que ordenava, machucava, assassinava! Desmembrei famílias, como se fossem mercadorias em uma feira.
— Obrigado por nos contar. Devemos perguntar-lhe agora, você consegue associar os acontecimentos de ambas as experiências vividas?
— Creio que sim. Posso concluir que, de certa forma, quando sob as terríveis consequências dos efeitos da guerra, submeti-me às dores semelhantes àquelas que impingi no pretérito distante. Em Roma, separei famílias e golpeei inocentes, sem qualquer compaixão, para mais tarde ter a minha própria esfacelada, e sentir no peito a lâmina fria de humilhações morais dilacerantes, culminando com o meu aniquilamento em Auschwitz, campo de concentração de judeus conduzidos ao extermínio pelos nazistas.
Lúcio arrematou:
— Você compreendeu plenamente a razão de lhe serem apresentadas as dolorosas cenas. Todos nós estamos sujeitos às Leis de Deus, sendo que uma delas é soberana, e reflete a Justiça Divina, impelindo-nos para a evolução do espírito, pelo aperfeiçoamento da alma. Trata-se da Lei de Causa e Efeito, a qual elucida que as nossas ações, quando comprometidas com o bem, serão laureadas; tanto quanto os envolvimentos com o mal, como forma de punição e aprendizado, deverão ser reparados.
A visitante foi então agraciada com a presença, no campo espiritual, de uma de suas avós, que veio acolhê-la, carinhosamente. Ao término da reunião, Lúcio se pôs a refletir sobre aquela conversa ocorrida dias antes, acerca da morte de inocentes em Gaza. E de como o testemunho de Hannah o auxiliou a constatar que, se por um lado muitos perecem na Terra em eventos trágicos, a citada Lei se aplica individualmente, em cada caso particular, constatando a sabedoria das palavras de Jesus “a cada um, segundo as suas obras”.